sábado, 17 de novembro de 2012

[Yacamim Livro 1] Capítulos 16 e 17


Olá, caros! Preparem-se porque aqui os preparativos acabam. Está na hora de começar a ação! o/


CAPÍTULO 16

Mas senhora Silvia, ainda não entendo...
Querida, estamos conversando há quase uma hora, deixe as formalidade de lado. Me chame apenas de Silvia, sim?
Certo, claro...
Amanda e Silvia, a senhora moradora do apartamento, estavam sentadas à mesa da salinha. Clara, totalmente desinteressada do assunto, vendo que ninguém lhe dava um motivo satisfatório para estarem ali ao invés de seguir para enfrentar a Companhia e, principalmente, os Terríveis, desistiu. Estava sentada sob os joelhos em um velho sofá a um canto da sala, digitando distraídamente em um de seus laptops. As mãos dela voavam pelas teclas, mas ela mal parecia prestar atenção, como se estivesse descarregando energia, fazendo uma terapia ao teclar. Já Vic estava encostado na janela, olhando o movimento da rua abaixo deles, refletindo sobre tudo o que havia acontecido até então, e tentando decidir que passo tomar a seguir.
Ah, me desculpe menina, eu ainda não decorei seu nome. Você já me disse, eu sei, mas a idade...
É Amanda, senho... quero dizer, Silvia.
Amanda, sim, sim... é verdade. A senhora tomou o último gole de seu chá. Depois levantou os olhinhos miúdos e admirou a garota-índia. É um nome tão bonito quanto você.
Obrigada respondeu Amanda, levemente constrangida.
Você ainda não entende, não é? Deixe-me explicar. Silvia pousou as mãos no colo e olhou em volta. Era uma senhora simpática, que usava pantufas, saia azul comprida e uma blusa em V sem decote. Os cabelos brancos estavam presos em um coque, e um colar de conchas repousava em seu pescoço. Parecia uma típica senhora, vestida com roupas de senhora, e amistosa como as senhoras costumam ser. Minha diversão, junto com meu marido, era trabalhar na magia e construir níveis cada vez mais avançados dela. Nosso espaço de treino era este apartamento. Com o tempo, ficamos tão bons nisso, que descobrimos ser capazes de afetar todo o prédio. Anos depois, ele, que era mais forte, conseguia interagir comigo, comunicar frases simples ou pequenas ações a quilômetros de distância. Eu e ele treinamos muito e usávamos este apartamento para treinar. Meu marido...

Ih, de novo? Era Clara. Ao ouvir menção pela enésima vez do marido, ela fechara o laptop com força, e agora tinha aquela expressão rabugenta no olhar. Vinha coisa pesada aí. Muito bonita a sua história e tudo, mas você continua girando em círculos aqui.
Como assim? E seu nome é...?
Clara. Eu já lhe disse isso.
Certo, me desculpe. Não precisa se aborrecer.
A senhora ficou levemente chateada, pois fechou a expressão também. Levantou-se da mesa, deixando uma confusa Amanda assistindo à cena, e foi para perto de Vic, talvez sentindo a energia pesar no ambiente próximo à Clara.
Só estou tentando saber começou Clara, sentindo que passou do ponto , há alguns bons minutos, o que diabos estamos fazendo aqui. Por que Vic resolveu que tinha que encontrar a senhora... Como que...
Ei! Era Vic quem falava. Havia se virado de costas para o trânsito lá fora. Encostou-se no vidro e olhou de maneira firme para Clara. Não trate Silvia desta maneira. Ela está apenas lhe dizendo o que você precisa saber. O resto, como os princípios que regem os encantamentos desta casa, precisam ser descobertos por nós, os visitantes. Só assim poderemos permanecer.
Clara olhou para Vic, ainda sem entender. Vic devolveu com confiança o olhar. Amanda continuava confusa, olhando de Clara para Silvia e Vic como se acompanhasse uma partida de tênis. No entanto, Silvia abriu um sorriso enorme, e bateu palmas exaltadas na comemoração.
É isso, isso mesmo! Que bom que você pôde compreender, Yacamim.
Ora, como assim? Exclamou Clara, indignada. Eu passo um tempão gastando a minha saliva com a senhora, e ele entra e a convence em um minuto? Alguém pode me explicar o que...
Eu posso, Clara. Fique calma. Amanda se levantou da mesa e foi se sentar no sofá, ao lado de Clara, que ainda bufava agitada. Como você deve ter visto na fachada, este é o Edifício Tenente Érico. O que você tem caso forme a sigla deste nome?
A sigla...... AAAAAH!!
Clara ficou tão surpresa que escancarou a boca e não conseguiu mais fechar. Olhava de Amanda para Vic, de Vic para Silvia, em profunda surpresa.
Tudo faz sentido agora, não é querida? O supremo terreno conhecido hoje por Eté é meu marido.

***

A senhora quer dizer que ele está vivo? Pode entrar aqui a qualquer momento?
Clara se levantou sobressaltada, teria derrubado o laptop caso Amanda não o agarrasse antes. A garota ruiva percebeu o que quase fez, e agradeceu à amiga com o olhar.
Clara... é Clara, não é? Perguntou de bom humor a senhora. Estou brincando, sei o seu nome. Érico morreu há muitos anos, nos comunicamos em raríssimas ocasiões, infelizmente... mas sei que ele está servindo à Hélio-Hidra da melhor forma, e me orgulho de ser a eterna esposa de um supremo como ele. Mas você precisa se acalmar Silvia olhou para Vic, preocupada. Ela é sempre assim?

Não, não é respondeu Vic. Nem imagino porque ela está tão agitada.
Ah, você não imagina?? Victor, eu tenho a primeira chance em anos de finalmente vingar a morte da minha família, e nós estamos aqui sentados tomando chá! Isso é ridículo!
Ela tinha começado a se acalmar, mas falou isso tudo quase gritando, e muito rápido. Soltou o corpo, afundando no sofá, e cruzou os braços.
Clara, nós...
Tudo bem, Yacamim falou Silvia. Deixe que eu respondo esta.
Ela foi até o sofá e, antes que Amanda pudesse educadamente ceder o lugar, a senhora se sentou
entre as garotas. Em seguida fez um sinal para que Vic se aproximasse. Inesperadamente, tirou de um bolso da saia que havia passado despercebido pelo garoto um charuto. Acendeu. Tinha aroma de baunilha, que logo se espalhou pela sala.
Me desculpem, um velho hábito. Mas é cheiroso, não é? As garotas concordaram. Clara um tanto indiferente e desconfiada, Amanda com um sorriso feliz, como se estivesse em um dia comum conversando com a avó. Vic estava tão surpreso com este súbito hábito da senhora que não respondeu. Eté os chamou aqui para que pudessem descansar para a viagem que farão. Mas, principalmente, chamou para que vocês se protegessem.
Como assim? Perguntou Vic. Tomamos precauções, não estamos sendo seguidos.
Ora, Yacamim, use sua sabedoria... Vertigo esperou muito por este momento para deixar que você escape entre os dedos dele tão facilmente. Vocês estavam sim, sendo seguidos. Neste exato momento, toda a Companhia sabe que vocês estão aqui.
Meu Deus, Vic, nós vamos causar outra explosão... exclamou Amanda, olhando para a expressão dura de Clara, ambas lembrando do apartamento em chamas da hacker e do sacrifício de Dan para que escapassem Vamos correr daqui!
Vic concordou com a cabeça, as meninas estavam se levantando...
Acalmem-se vocês. Vamos, agora mesmo. O tom era enigmático, enfático mas sem ser grosseiro. Eles pararam na mesma posição em que estavam, congelados. Relaxem, pelos céus!
As garotas voltaram a se sentar. Vic voltou para perto do sofá, apenas para contestar.
Silvia, perdemos Dan em situação parecida, precisamos...
Eu sei, Yacamim. Mas não se preocupe. Não ouviu a história que lhe contei sobre o nosso estudo de magia? Como logo o espalhamos para todo o prédio?
A compreensão logo os atingiu.
É claro! Exclamou Clara. Ninguém pode chegar até a gente...
... Porque aqui dentro estamos protegidos pelos encantamentos de Silvia! Completou Vic. ... E pelos meus, é claro afirmou uma voz profunda e masculina.
Todos olharam em volta, até mesmo Silvia se surpreendeu. A voz vinha de Amanda.
Érico! Meu amor, que bom ouvir sua voz!
Eté.

CAPÍTULO 17


Na presença do supremo, Vic pulsava em outro ritmo. Todo o seu corpo reagia à força do Supremo, assim como nos contatos com Apoena e no Jardim dos Manacás. A força divina parecia sempre trazer à tona Vic em sua personalidade plena, no todo de seu potencial, como Yacamim.
Yacamim, como é bom vê-lo à salvo. Você não pode dar à Companhia a vantagem do ataque novamente, não tem energia ainda para atuar na defesa. Por isso os encaminhei pela energia até aqui, onde estarão protegidos.
Clara observava a cena em choque. Toda a cor de sua pele havia ido embora, ela estava branca como cera. Certamente nunca havia presenciado algo como aquilo, e não estava conseguindo absorver. Silvia, encantada por reencontrar o marido, olhava para Amanda com os olhos brilhantes e lacrimosos, mas respeitou o momento com Yacamim e se manteve em silêncio. Como distração, permaneceu olhando e ouvindo Eté, mas apoiou a cabeça de Clara em seu ombro, para confortá-la.
Eté... não podemos ficar aqui. O tempo é curto, podemos perder o rastro.
Não, Yacamim. Você precisa ficar aqui por agora. Saia apenas no cair da noite, é o melhor momento. Darei minha proteção a vocês até que se afastem o suficiente. Não deixem de se disfarçar o melhor que puderem.
Certo. Vic estava com tantos sentimentos confusos, que não conseguia se concentrar inteiramente Eu... eu não sei se estou pronto, se serei capaz...
Yacamim, nós Supremos não temos todas as respostas. Tudo pode dar certo ou errado. Mas não há tempo para a preparação que gostaríamos que você tivesse antes de se confrontar com Vertigo. A invasão platina está muito mais próxima do que pensávamos anteriormente, e a energia tem estado cada vez mais agitada. A escuridão da Companhia tem eclipsado cada dia mais nossa brilhante luz de vida. Não nos resta muito tempo.
Eu sei, mas...
Não irá lhe servir de nada as preocupações sem sentido. Você está tão pronto quanto poderia estar, e um motivo pessoal de amor e perda para lhe mover e dar incentivo.
Sim, Eté disse Yacamim. Você tem toda razão.
Estaremos acompanhando, iremos ajudar quando possível. Agora, descansem. Vocês precisarão partir quando a noite cair...
Para onde vamos, senhor? Perguntou Clara, recuperando a voz.
Ora Clara, tenho certeza de que é exatamente você quem tem a resposta. Oriente-os até o local. Os Supremos estarão com vocês.

***

Era noite. Haviam montado acampamento no fim da serra que ia em direção a Petrópolis. Foram de ônibus até ali, no último horário, usando roupas longas e toucas na cabeça emprestadas por Silvia, encobrindo boa parte dos cabelos dos três, tomando o tempo frio como aliado e dificultando em muito a identificação deles.
Clara estava no meio da barraca, logo abaixo da lamparina, separando cuidadosamente o conteúdo de sua mochila. Aparentemente, ou a garota tinha comportamento oposto quando estava fora de casa, ou a perda do lar fez com que subitamente mudasse seus hábitos. Havia compartimentos internos em cada cantinho da mochila, que se revelou incrivelmente espaçosa aos olhos de Vic e Amanda. Dela surgiram dois laptops, carregadores, cabos diversos, outro rádio modificado, uma bela quantia em dinheiro e muitas, muitas baterias.
Depois de um tempo organizando o material, ela levantou os olhos e viu os dois admirando seu trabalho.
É a minha mochila de emergência. Mantenho-a sempre pronta para imprevistos. Já fiz trabalhos perigosos se sabotagem e invasão para e contra empresas grandes, é sempre bom estar preparada para sair a qualquer momento.
Os dois assentiram. Não tinham nada além da roupa do corpo, parte dela recém-adquirida, e a sacola de Amanda, lotada de suprimentos. Vic se sentia um aspirante a herói com armadura de papelão e arma de plástico. Agora entendia o quanto a Força se desestabilizou pela perda do Banco. Estes pensamentos apenas flutuavam pela mente dele, sem que conseguisse absorver nada daquilo. Dan era o que girava em seu consciente, e cada vez que o amável rosto dele assumia o quadro mental em primeiro plano, uma dor lancinante rasgava o peito dele, acompanhada de uma enorme sensação de impotência. Seu melhor amigo morreu para salva-lo. A Companhia não iria ficar impune.
É melhor irmos deitar informou Clara Precisamos levantar acampamento bem cedo. Quanto estivermos um pouco mais próximos de Petrópolis, volto a captar as comunicações da Companhia.
Por que Petrópolis? perguntou Amanda.
Bom, para triangular a posição da comunicação e poder sintonizar na conversa, horas atrás precisei, além da frequência que Dan me deu, determinar a origem do sinal. E vinha diretamente de lá. Mais precisamente dos arredores da rodoviária.
Amanda assentiu e entrou em seu saco de dormir novo. Vic já estava há tempos no seu, de olhos fechados mas plenamente acordado, travando silenciosas batalhas internas. Clara terminou de organizar seu material, apagou a luz da barraca e se deitou. Tudo o que ouviam agora era o som da mata e de seus insetos, imunes à presença daqueles três em seus domínios. 



quinta-feira, 15 de novembro de 2012

[realidade] Mãe

Bem... prefiro escrever ficção mas de vez em quando é bom falar da realidade. E da vida como ela é. Não quero ser negativista aqui não, acho a vida linda (tenho achado isso cada vez mais nos últimos tempos), cheia de oportunidades, pessoas interessantes, lugares a conhecer, etc etc. Mas a vida começa e termina, e embora a gente saiba que isso vai acontecer a todos, é sempre um momento complicado. Tenho um caso próximo meu então vou falar com todos vocês. Eu sou o cliente no divã e vocês são meus psicólogos, ok?
Bem, acho que só quem já viveu uma situação da perda de um parente próximo sabe como é. Muda muito a sua perspectiva sobre a vida, a noção sobre o tempo que você e os outros têm... a noção de que pode ser de uma hora pra outra. De certa forma, eu aprendi tudo isso quando minha mãe morreu no ano passado, vítima de um acidente de carro. Foi traumático, sofrido e difícil. Ela estava em protocolo de morte cerebral e o processo todo levou praticamente uma semana. Dias e dias de angústia, de visitas ao hospital. Por duas vezes entrei e fiquei ao lado dela, um corpo paralisado e machucado no lugar do que era a minha mãe, maravilhosa, cheia de vida, risonha, engraçada. Pense numa pessoa que não perde uma piada, que tem a melhor risada que alguém pode ter? Alguém que acima de tudo ama você incondicionalmente. E pense em tudo isso apagado de uma hora pra outra.
Nem tudo era flores na minha relação com ela não. Nos últimos anos de vida dela nós nos desentendemos muito. Passavamos vários meses sem nos falar. No último ano e meio de vida ela desenvolveu um transtorno mental e foi dia a dia deixando de ser quem ela era. Em um dia ela era um caco. No outro, era a pessoa mais feliz e eufórica do mundo. Nenhuma das duas era minha mãe, não de verdade. Foi difícil demais acompanhar o processo, e a dor não pára por aí.
Vivenciei de forma distante a luta contra e a favor da vida, enquanto os meses iam passando e ela alternava entre tentativas de suicídio e internações sucessivas. Nem posso imaginar o quão doloroso foi acompanhar isso de perto - para colocar em contexto, ela morava em Brasília, eu no Rio -, mas sei que daqui foi duro, muito duro. Pior ainda porque eu a visitava mais ou menos de três em três meses, e em duas ocasiões quando voltei pro Rio aconteceu uma nova tentativa de suicídio. Isso começou a tirar todo o meu foco da minha vida, eu me sentia deprimido assim que acordava e a sensação me acompanhava ao longo do dia como um convidado indesejado.
Para piorar, a última vez que falei com ela não foi nada feliz. Ela estava no auge dos seus transtornos. Foi por telefone. Eu estava em Brasília, mas na casa dos meus avós maternos - ela na ocasião vivia com um cara em outro apartamento e queria que eu ficasse lá, mas não havia a menor chance de isso acontecer. Era um ambiente impróprio e que não me causava qualquer desejo de permanência. Bem, ela bateu muita boca na ligação, disse que eu estava sendo manipulado por todo mundo. Que todos estavam contra ela, que ela só estava tentando ser feliz. Bem, exigiria uma explicação muito maior para entender porque ninguém apoiava a relação dela, mas basta dizer que o cara era um grosso, que tirou toda a vaidade e liberdade dela, tirou a feminilidade, e por aí vai. Ela virou de uma mulher independente que fazia o que queria, mesmo doente, para um cachorrinho submisso, e ainda mais triste do que antes, embora se recusasse a ver isso. Resolvi eu, espertamente, falar para ela que eu iria passar os dois últimos dias da minha estadia na casa do meu pai. Pronto. Ela ficou revoltadíssima porque pro meu pai eu tinha tempo, para ela não. Fui tentando falar e ela avisando que ia desligar. No terceiro aviso. Ela desligou............. ela desligou para sempre.

Algum tempo depois ela tinha se mudado com o cara para uma cidade no meio do nada. Mas estava infeliz e resolveu bater a poeira, dar uma chance para si mesma. Resolveu voltar para Brasília e para a casa dos meus avós. Entrou no carro com todas as coisas... mas com vários problemas. Tinha tomado remédios pesados - necessários mas que a deixavam sonolenta. Os pneus do carro estavam carecas. Tinha chovido. O carro estava pesado, com muita bagagem. E para completar, ela estava sem cinto. Bom... o carro atravessou a pista depois de rodar e foi pego por um caminhão. O caminhão nada sofreu, por sinal. Já minha mãe... não está mais aqui. E eu prefiro crer que, onde quer que ela esteja, ela está melhor agora. Pelo menos é tudo que eu posso desejar. Mãe, eu não sei onde você está... mas nunca duvide que amo você demais.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

[Yacamim Livro 1] Capítulos 14 e 15

Olá pessoal! Mais dois capítulos do livro. Aqui, em uma grande reviravolta, o grupo de Yacamim sofre uma perda inestimável ao mesmo tempo em que ganha novos e incertos apoios... serão confiáveis??


CAPÍTULO 14

A chuva passava em uma cortina densa de água. Pela janela, Vic observava o movimento dos mo- radores, imaginando como seria ter uma vida normal novamente. Tinha certeza de ter assumido um caminho sem volta, e embora não se arrependesse disso, era estranho pensar nas responsabilida- des e esperanças que tantas pessoas que ele desconhecia até então depositavam nele há anos. Seu pai e seu melhor amigo faziam parte desse grupo, e Vic daria cada gota de sangue e suor que tivesse no corpo para fazer jus a todos eles.
O trio desceu do carro correndo da chuva, assim que ele parou nos arredores da Tijuca. Subiram até o oitavo andar de um edifício de aparência antiga e largada. O prédio ficava ligeiramente isolado dos demais daquela região, tendo apenas uma praça à frente, o que aumentava a impressão de abandono.
Bateram à porta do 801. Vic preferiu não fazer perguntas e deixar o inesperado fazer parte de sua rotina, como vinha acontecendo até então. Uma garota apareceu na entrada do apartamento. Era baixa nos seus quinze anos, de cabelos ruivos com mechas coloridas e óculos de aro arredondado. Tinha a pele bastante clara que denunciava meses ou até anos sem bronzeamento. Ligeiramente desajeitada mas com um ar esperto, parecia o tipo de mulher com quem Vic não se meteria. Dan, no entanto, abriu um sorriso ao vê-la, dando um abraço que foi retribuído sem o mesmo entusiasmo pela garota.
Olá, Clara. Desculpe-me por chegar assim, de repente, mas é um caso de vida ou morte. Pode- mos entrar?
Hm... claro.
Com um ar ligeiramente confuso, ela deu um passo para o lado e segurou a porta aberta para que os visitantes entrassem. O apartamento era minúsculo. Provavelmente havia sido um quarto e sala, mas a parede de divisão fora demolida, de modo que havia apenas uma mesa, uma pequena cozi- nha e uma cama em primeiro plano. Não havia luz natural ali, a única fonte de iluminação vinha de uma lâmpada no teto. No lado mais escuro do apartamento, ao lado de uma porta de acesso à va- randa fechada, havia um computador com nada menos do que três monitores acoplados, uma pol- trona de couro gasta, dezenas de cds e dvds espalhados na bancada, fios, ferros de solda, latas de Fanta Uva e restos de biscoitos e salgadinhos.
Desculpem pela bagunça, não costumo receber visitas...
Apesar do comentário, Clara não fez o menor gesto para limpar ou tentar esconder a confusão. Vic gostou disso, ao menos ela não tinha vergonha de mostrar o que era e agir naturalmente, o que era bom sinal. A transparência era uma qualidade que ele prezava bastante. A garota se acomodou em sua poltrona diante das telas, espanando migalhas do encosto de braço antes de levantar o olhar para eles.
Então, Dan, a que devo a visita?
O rapaz olhou para os amigos, pensando como começar.
Estes aqui são companheiros hélio-hidranos, Amanda e Vic. Estamos em uma missão crucial
para a HH, e possivelmente, para toda a América Latina.
A garota olhou impassível para eles. Victor percebeu com certo prazer que era a primeira vez que

alguém a quem era apresentado não corria para ele dando-lhe saudações, cumprimentos e votos de sucesso.
Oh, olá vocês ela acenou com a cabeça para os dois, como se tivesse acabado de perceber a presença deles. Ambos retribuíram o cumprimento Dan, confesso que não estou muito preocupa- da com o destino da América, contanto que eu tenha dinheiro para pagar as contas no fim do mês. Então, se você espera que eu ajude nessa sua causa santa, vai ter que me dizer o que quer e o quanto vou ganhar por isso.
Amanda e Vic não esperavam por essa, e se olharam com os olhos arregalados. Clara continuou calma, como se fizesse aquilo todos os dias. Dan também não se sobressaltou, mas percebeu o es- panto dos amigos e lhes falou em meio-tom, de modo reservado Ela já prestou alguns serviços para o Banco. É uma hacker incrível, capta qualquer transmissão e coloca até satélite em órbita, mas só trabalha com a grana no bolso e não é de meias palavras. Não se preocupem, eu cuido dis- so.
Ele tornou a olhar para a garota sentada ao computador.
O negócio é o seguinte: você deve se lembrar da Companhia. Nossos conflitos com eles estão mais graves do que nunca, e os caras não estão brincando. Atiraram contra o nosso carro e não es- tão medindo forças para nos liquidar. Precisamos saber o que estão tramando. Estive como refém deles e sei que usam essa frequência para se comunicar, provavelmente encriptada. Dan entre- gou a ela um pedaço de papel com alguns números escritos Basta que você acesse essa comuni- cação para que ouçamos a conversa. Vamos lhe pagar bem.
Ele esticou o braço, pegou a sacola no ombro de Amanda, abriu um dos compartimentos e o es- vaziou na mesa do computador de Clara, espalhando notas de cinquenta e cem reais sobre as pi- lhas de mídias usadas.
Dan! Era Amanda que chamava, em meio-tom, mas o rapaz a ignorou. Continuou fitando Clara com o mesmo olhar que a moça dirigiu a ele segundos antes. Pareciam jogadores de poker, olhando um para o outro espera do próximo movimento. Lentamente, a garota pegou o dinheiro, passou os dedos pelas notas e as guardou em um mochila marrom que estava no chão ao lado da poltrona. Fechado.
Ela logo começou a trabalhar. Estalou todos os dedos das mãos, o que arrepiou os pêlos dos bra- ços de Vic, pegou um velho rádio no armário, conectou em uma entrada modificada um cabo USB e plugou no computador. Abriu uma sequência de letras e números em uma língua que Vic desconhe- cia, digitou em velocidade assustadora códigos e termos, senhas e instruções, e ficou calada por alguns minutos.
E então? Dan ousou perguntar, finalmente.
Estou quase lá, relaxe respondeu ela, impaciente.
De fato, chiados vindos do rádio se fizeram ouvir pouco depois. Estações entravam e saiam de

sintonia rapidamente, produzindo uma melodia estranha. Vic temeu que fizessem contato com ali- éns, tamanha a aleatoriedade com que as músicas, notícias e vozes se misturavam e se separavam na velha caixa. Aos poucos, as mudanças foram diminuindo. Fez-se estática por alguns segundos, e então, pouco a pouco, uma comunicação ia entrando em sintonia.
"......fechando o cerco.....
.....tendido, prossiga.
................fechadas, dando a volta...... equipe de cobertura.....

....ok.....façam......cautela a invasão.
.......... senhor."
Todos no apartamento olhavam boquiabertos para o radinho, esperando ouvir mais, captar algo

mais além daquelas palavras. Mas não foi preciso esperar muito. Passos ecoaram por todos os la- dos no entorno da casa. Como uma bigorna congelante, um peso gigantesco caiu no estômago de Vic. Invasão. A Companhia os seguiu. Estavam perdidos.

CAPÍTULO 15

Clara meio gritava, meio balbuciava enquanto girava em círculos, o que fazia com que suas frases parecessem a transmissão que ouviram no rádio.
Os trouxe até aqui........ cilada....... na minha porta..... absurdo....
Dan passou a mão pelos cabelos, segurou a garota em desespero pelos ombros e olhou calma- mente para ela com seus olhos muito verdes.
Clara, preciso que vocês os tire daqui, tudo bem? Vic precisa ser protegido, ainda é cedo demais para um confronto. Vou ganhar tempo ficando aqui, mas vocês precisam ir agora mesmo.
Todos encararam o rapaz. Até Clara perdeu a fala, olhando séria para ele.
Dan, você não pode fazer isso! tentou Amanda, mal atraindo a atenção dele. Vic estava cons- ternado. Mais uma vez, a Companhia estava na cola deles quando julgavam impossível, depois de deixar até mesmo o carro para trás. Como eles estavam sempre tão próximos? Logo fechou os olhos e forçou-se a tirar estes pensamentos da cabeça, em pura concentração. Seu coração batia louca- mente no peito.
Não consigo acessar... nem uma palhinha... de Yacamim... Abriu os olhos e girou em torno de si mesmo, fitando as paredes agora silenciosas Não há nenhum elemento do tripé da Hélio-Hidra por perto!
Não se preocupe, Vic disse Dan em tom profético Quando você estiver pronto, isso não será preciso.
Clara já havia acordado do transe e aberto a porta para a varanda. Na realidade, ela se abria para uma escada de emergência que descia pelos fundos do prédio até o térreo. Mochila nas costas, ela passou pela abertura sem nem olhar para trás.
Dan... Vic olhou para o amigo, sem conseguir mexer as pernas.
Vá, Yacamim. Não tenho nada a temer, senão a sua segurança.
Amanda ergueu olhos lacrimejantes para Dan, se despediu com o olhar, e arrastou Vic pela aber-

tura. Os dois desceram aos trancos e barrancos pela escada de emergência, Clara já vários lances na frente deles.
Dan encarou sereno a porta sendo esmurrada. Logo seria posta ao chão. Fechou a passagem pela qual os amigos fugiram, contornou a mesinha e postou-se no centro do apartamento, de frente para a porta. Não usava armas como os atacantes, mas tampouco imploraria por misericórdia. Pe- gou uma lata ainda cheia de refrigerante na bancada e a arremessou sem cerimônia contra a lâm- pada no teto, que se espatifou e mergulhou o apartamento na escuridão. Que viesse a Companhia.
Nos fundos do prédio, os três corriam para longe dali. Correram por debaixo de árvores atravessa- ram a rua e estavam alcançando o quarteirão seguinte quando o chão tremeu. O apartamento de Clara explodiu em laranja e amarelo, chamas saindo pelas janelas fechadas. A garota lançou apenas um olhar para seu lar destruído, e continuou correndo, com Amanda e Vic em seu encalço.
Pararam cinco quarteirões depois, exaustos e pingando de suor. Amanda sentou, abriu a sacola e olhou dentro dela.
Não temos mais um centavo sequer. Dan usou todo o nosso dinheiro para pagar você, Clara.
A garota ruiva também se sentou. Apanhou na mochila cinco notas de cem e pôs na mão de Amanda Não se preocupe. Não tenho para onde ir agora, certo? Dan me envolveu nessa. Ele me pagou por um serviço e eu vou cumprir. Quando souberem o suficiente, tomo o meu caminho. Ela tornou a colocar a mochila marrom nos ombros Use esse dinheiro para comprar uma barraca para quatro ali ela apontou para loja de itens esportivos e comida naquele mercado ao lado.
Por que eu?
Bom, eu moro aqui, acho uma má idéia que os locais me vejam comprando itens para acampar após meu apartamento ser explodido. E, pelo que entendi, eles estão atrás dele, certo? Ela indi- cou Vic com a cabeça Logo, você é a única que pode ser vista sem grandes problemas.
Sem ter o que argumentar, Amanda correu para o outro lado da rua. Alguns minutos depois, vinha com a barraca compactada nos braços e a sacola nas costas estufada.
Comprei algumas roupas novas na loja de esportes, estamos precisando. Também comprei fru- tas e comidas facéis de fazer com pouco ou nenhum fogo, além de ovos, água e...
Tudo bem, Amanda, a gente agradece, mas você pode nos contar de sua bela lista de compras quando estivermos longe daqui? Clara jogou os cabelos para trás impaciente e voltou a andar em passos largos. Amanda abriu os braços em sinal de incompreensão para Vic, que deu de ombros e seguiu a estressada companheira de viagem.

***

Vic disse Clara, nitidamente aborrecida. O que diabos estamos fazendo em Copacabana?
O dia já ia pelo meio da tarde, e não havia mais sinal de chuva, embora ainda fosse um dia frio. Os três sabiam que a Companhia não estaria longe, mas Vic sentiu que precisava ir até ali, como se algo o convocasse. Ali se sentia mais próximo de seu objetivo, como se pudesse voar para atingi-lo. As meninas olhavam para ele e o acompanhavam sem entender. Estavam cansadas, carregando peso e andando atrás de um garoto indeciso, que parecia circular totalmente sem rumo por um bair- ro cheio de pessoas comuns nas calçadas, cada qual seguindo seu caminho cotidiano. Vic deve ter enlouquecido depois da explosão, depois de perder Dan, pensou Amanda, cheia de dor no coração.
Nas calçadas apinhadas de gente, a vida seguia seu fluxo cotidiano. Alguns homens entregavam panfletos. Crianças passavam correndo. Muitos velhos caminhavam a curtos passos. Um número incalculável de pessoas andavam agitadamente, como se estivessem sempre atrasadas para o que quer que fosse, não importando o horário do dia ou da noite. Na rua, veículos sem fim passavam, em especial táxis e ônibus. O barulho era ensurdecedor, ainda mais para um menino de interior. No entanto, Vic não parecia tomar consciência do mundo pulsante à sua volta. Caminhava obstinado,
como se seguisse uma bússola interna que estava descalibrada. Saiu da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, desceu a Duvivier e entrou na Rua Barata Ribeiro. Caminhou um pouco mais. Clara fuzilou Amanda com os olhos, nitidamente implorando por uma intervenção. Ela ia abrir a boca quando Vic parou, tão subitamente que Clara quase se chocou com ele.
O que foi agora?! disse uma irritadíssima Clara, assustando os passantes mais próximos.
É aqui.
Amanda olhou em volta. Era um edifício simples, como qualquer outro no bairro. Uma placa na

fachada dizia: Edifício Tenente Érico. Vic, esse nome...
Sim, eu sei. Vamos entrar.
Vic parou diante da porta do prédio, com as duas logo atrás dele. O porteiro, ao olhar pessoas es- perando para entrar, prontamente apertou um botão na mesa, que fez com que a porta se abrisse. Vic deu boa tarde ao porteiro, que respondeu sem se importar com a entrada de um desconhecido com cara de índio, uma garota ansiosa e uma ruiva de ar nervoso.
Chegaram até o elevador, até que Vic percebeu que não tinha a menor ideia de que andar deveria ir. Ao perceber a indecisão de Vic, Clara bufou, impaciente.
Será que vocês poderiam me dizer o que estamos fazendo aqui, pelo menos?! Esperem aqui orientou Vic, sem responder.
Mas...
É só um momento, Clara.
Voltou até a entrada, se dirigindo ao porteiro.
Oi, me desculpe... eu vim visitar a minha avó, mas me esqueci do número do apartamento... Que cabeça a minha...― ele sorriu, tentando ganhar a simpatia do porteiro. O homem devolveu o olhar impassível. Vestia um uniforme bege do condomínio. Estava tentando sintonizar um canal em uma micro televisão que estava em cima da mesa.
Sei não sinhô... respondeu o porteiro.
É uma velhinha...
Sei não sinhô...
Droga, tem muitas velhinhas por aqui. Pense, Vic, pense...
Ela anda bem devagar, tem um cheiro de colônia e está sempre vestindo azul ou branco. Não sabia como sabia aquilo, mas sabia.
Ah, sei sim sinhô...
―...
―...
Você pode me dizer o número do apartamento? Sei não sinhô...
Você acabou de dizer que sabe!
Sô novo dotô, tô começando ainda. Já vi a senhora, mas não sei o apê não sinhô...
Arg. Teria que ser pelo instinto. Vic voltou até as duas. Amanda estava ansiosa, mas agora Clara

estava segurando o riso. Vic trocou de papel com ela, olhando-a irritado. Mas logo deixou isso de
lado e se concentrou. Chamou o elevador, entrou com as duas. Pôs as mãos sobre o painel dos an- dares, deixou que a energia fluísse... apertou um dos botões sem sequer olhar para ele. Chacoa- lhando, pararam no terceiro andar.
Saíram do elevador, Vic andando de olhos fechados, sentindo a energia... e a porta do 301 estava carregada dela. E lá estava o símbolo da Hélio-Hidra, a gota d’água e o sol entalhados discretamente na madeira. O garoto fez rapidamente o gesto da HH. O símbolo brilhou em amarelo e azul, e a porta simplesmente se abriu para recebê-los. De frente para a entrada, em uma pequena mesa circular, uma senhora estava sentada, folheando um livro e tomando chá. Nem levantou os olhos à chegada dos intrusos.
Bem-vindo, Yacamim. Meu marido me avisou que você viria.